
Texto levemente inspirado (e totalmente modificado) em outro produzido para uma edição de Revista Rua Grande
Complexidade. Uma palavrinha que afugenta o público em geral. Desavisadas, as platéias tendem a confundir o vocábulo com “complicado”. Mas são coisas diferentes. Christopher Nolan acaba de dar uma aula sobre isto. E a prova da distância abissal entre ambas as palavras atende pelo horroroso título nacional A Origem, batismo tupiniquim do acertado nome original Inception (“inserção”).
Em 2000, quando saí do cinema Guion após uma sessão de Amnésia, olhei para a guria que me acompanhava. Meu queixo ainda estava caído, o que provavelmente me deixava parecido com a máscara da cinessérie Pânico. A moça me discorreu como havia de-tes-ta-do o filme e sua narrativa de trás para frente, o que, a julgar pela avidez com que consumia as horrorosas comédias do Rob Schneider, apenas me deu certeza: o que eu acabara de ver era um marco moderno do cinema, o descobrimento de um diretor talentoso, a quem daí para diante eu deveria prestar atenção.
E de lá para cá, Nolan nunca me decepcionou: seja nos muito bons Insônia e Batman Begins, seja nos irretocáveis O Grande Truque e Batman – O Cavaleiro das Trevas, o diretor britânico sempre entregou entretenimento de primeira grandeza, sempre embaralhando a linha que separa o filme puramente comercial daquele com ambições mais autorais.
Se alguma prova ainda faltava de que Christopher Nolan é mais que um diretor de filmes de sucesso, A Origem está aí para atestar a sua incrível vocação para arquiteto da Sétima Arte.
Contando com uma estrutura dramática que envolve quase uma dúzia de personagens, inúmeros cenários e vários acontecimentos que ocorrem simultaneamente, em dimensões paralelas e com contagem de tempo diferente, A Origem é um enorme quebra-cabeças, desses que, se for visto com pálpebras cansadas, pode se tornar uma esfinge.
O caráter onírico de certas imagens e cenas de ação, juntamente com o teor reflexivo de alguns questionamentos que propõe, aproxima o novo filme de Nolan dos primeiros dois Matrix, antes dos irmãos Wachowski renderem-se aos clichês mais rasteiros de Hollywood e mandarem a trilogia ralo abaixo com o dispensável (e profundamente decepcionante) Revolutions.
Já o roteiro de A Origem encarrega-se de colocar absolutamente todas as pecinhas da história encaixadas como um relógio suíço ao final das 2 horas e meia de projeção.
E se o final pode ser interpretado de 2 ou mais formas diferentes, podendo render acalorados debates nas mesas de boteco, é porque Nolan não se contentou em criar um roteiro que beira a perfeição: o britânico ainda encontrou fôlego para provocar a platéia na última cena, reforçando a sua vocação para colocar aquela pulguinha bem-vinda atrás da orelha do público, algo para levarem para casa e discutirem com o travesseiro.
A história, que versa sobre um ladrão especializado em espionagem industrial que, por meio de uma tecnologia nunca explicada, é capaz de invadir os sonhos e roubar segredos, merece ser descoberta durante a exibição. Pode-se revelar que o protagonista (um surpreendente Leonardo Di Caprio) vive exilado na Europa, impedido de retornar aos EUA, onde vivem os seus filhos, e é convencido a realizar um último trabalho com a promessa de receber a anistia que lhe possibilitaria reencontrar a família. Só que a missão envolve não roubar um segredo, mas sim o inverso: inserir uma idéia através dos sonhos do herdeiro de um magnata à beira da morte. Para tanto, o protagonista tem que reunir uma equipe especializada em invadir sonhos, além de lidar com os seus próprios fantasmas do passado.
Parece complicado à primeira vista, mas é só complexo. O roteiro se encarrega de despejar nos momentos oportunos todas as respostas para as perguntas que passam na cabeça do público, principalmente através da personagem de Ellen Page (a eterna Juno, sempre uma gracinha), que atua como a arquiteta da quadrilha, a especialista em criar o cenário dos sonhos.
Os efeitos especiais são sensacionais, criando toda uma atmosfera de sonho que resulta inovadora e referencial ao mesmo tempo, ao passo que a trilha sonora arrebatadora do alemão Hans Zimmer, que dialoga ainda com a canção Non, je ne regrette rien, na voz de Edith Piaf, tem papel fundamental na trama.
Entretanto, muito do impacto de A Origem vem de uma montagem como há tempos não se via no cinema. O roteiro de Christopher Nolan poderia ser taxado de infilmável pela maioria dos montadores, tal é o volume de camadas e acontecimentos simultâneos a serem editados. O resultado, porém, é um trabalho irretocável, que se não levar o Oscar da categoria no ano que vem, é porque houve marmelada na hora da contagem dos votos.
Pode-se taxar Christopher Nolan de excessivamente racional, mesmo ao engendrar uma trama mirabolante ambientada grande parte no mundo dos sonhos, com suas referências à arquitetura e conceitos psicológicos. Mas é inegável que o inglês é mestre em tratar o público como pessoas adultas e não como retardados. E isto, para os cinéfilos, por si só já é um sonho realizado.
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