Um clichê que eu sempre curti falar, salivando com a boca cheia de empáfia, é o de que São Paulo é uma selva de pedra feia, suja, boba e chata. Na verdade, na verdade, qualquer afirmação minha sobre SP era o oposto: uma inverdade. Uma mentira mesmo.
O fato é que eu já tinha ido a Sampa várias vezes. O fato primordial (e quase nunca revelado) é que eu era um piá quando estive lá da última vez. Um fedelho que obviamente pautava suas impressões sobre a cidade pelo número de miniaturas do Star Wars que encontrava nas lojas.
Demorou mais de duas décadas para que eu pudesse estufar o peito, arrumar a franjinha e vociferar: eu tinha razão. São Paulo é, sim, um clichê: é uma floresta de concreto, é suja, é feia, é boba e é chata. Mas também é o contrário disso tudo: é verde, é limpa, é bonita, é esperta e é divertida. Não tem nada de boba, muito menos de chata.
São Paulo é uma cidade tão grande que acabou se tornando várias. É o equivalente urbanístico do velho e bom 3 em 1, com a vantagem de não enrolar as fitas cassete.
Acontece que esse tamanho todo, essa diversidade toda, tem um preço. E um preço caro demais para alguns muitos.
Bairros como Morumbi, Vila Madalena e os Jardins apresentam-se como oásis de beleza, civilidade, diversão e arte. É pão e circo, às vezes literalmente. Acontece que, como todo bom oásis daqueles filmes B de beduínos, tratam-se de miragens. Uma falcatruagem dos paulistas. Uma matrix com sotaque macarrônico. Um biombo colocado estrategicamente no meio da sala e que nos dificulta visualizar o mofo no carpete e o papel de parede rasgado.
Pois SP não é só o luxo absurdo da Oscar Freire, os musicais da Broadway que nunca chegam ao Sul, o Imax (espécie de orgasmo coletivo para cinéfilos, sem a parte nojenta que a imagem sugere), o picolé de melão do Liberdade, os petiscos do Mercado Municipal e o chopp gelado dos botecos da V. Madalena.
Há uma outra São Paulo ali, virando a esquina. Uma São Paulo que fica meio escondida no meio do burburinho da 25 de Março e da Santa Ifigênia. Não aquela dos nordestinos que movimentam as engrenagens da cidade grande, do mesmo jeito que os mexicanos fazem com Los Angeles. Nananinanão. Me refiro àquela que está incrustada no concreto dos prédios horrorosos e pichados do Centro.
É só olhar para os lados. Debaixo das marquises, há uma espécie de animal ainda não catalogado pelos biólogos. Uma raça que já foi um dia humana, mas que acabou metamorfoseada em algo novo. Algo que causa arrepios. Darwin se refestelaria ali.
Os seres sub-humanos de que falo escolhem indistintamente fachadas de joalherias chiques, igrejas ou cinemas pornô decadentes para se abrigarem da chuva, do frio e da repulsa da população. Ficam ali, alimentando-se através de um cachimbo, esperando a hora de morrer. Estão ali, do nosso lado e em um número inacreditável, algo que não encontra paralelos remotamente próximos no velho Centro portoalegrense. Porque a zona central dos paulistanos é como um mosaico de “centros”, um colado no outro, sem começo nem fim visíveis.
O mais incrível é que, em meio à muvuca paulista, esses párias da nossa sociedade parecem virar camaleões, integrados de tal forma à paisagem dos prédios imundos que fica difícil distingui-los do lixo que se acumula em cada esquina.
Muito se fala sobre a desigualdade social e a violência do Rio de Janeiro, outro clichê brasileiro. Mas a Capital fluminense, por sorte, deu origem a um fenômeno interessante e talvez único: o socialismo praiano.
Pois nas areias do Leblon, de Ipanema, de Copacabana e do Piscinão de Ramos, não importam CEP ou saldos bancários. Turistas e coadjuvantes das novelas do Manoel Carlos convivem em harmonia com favelados e moradores de rua. Suíços jogam futivôlei com mendigos. Milionários flertam com mulatas que desceram agorinha do Morro. Todos são iguais na orla carioca, torrando os corpos sob o trinômio céu, Sol, sunga. É a ironia de todas as ironias. Toda a utopia socialista concretizada em seu mais incandescente e bronzeado esplendor. Pelo menos enquanto não começar a chover.
Já São Paulo não tem praia. Não há bermudão floreado que consiga assemelhar espécies tão distintas. O crack fumado compulsivamente pelos habitantes noturnos do Centro definitivamente não combina com os charutos cubanos saboreados pelos ricaços dos Jardins. Não há convivência possível, apenas um muro sem tijolos, uma fronteira que não pode ser cruzada com a ajuda de um coiote chicano ou um bote inflável cubano.
Sampa é uma cidade encantadora sobre a superfície. O problema é que no underground esconde-se um mundo assustador, engolido justamente pela imagem clichê da selva de concreto.
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