(texto produzido para a Revista Rua Grande, levemente, mas levemente meeeesmo, transfigurado pelo próprio autor)
Grandes diretores conseguem equacionar o respaldo da
crítica dita "especializada" e daqueles que enxergam o cinema com uma lupa particular
que transcende o conceito de mera diversão passageira com a aceitação do
público que, ao buscar pipoca e refrigerante, sabe valorizar quando recebe
champanhe e canapés em seu lugar. São cineastas como Almodóvar, Nolan, Spielberg, Scorcese,
Coppola, Tarantino, Allen e tantos outros gringos, assim como alguns
brasileiros (Meirelles, Padilha, Salles), que conseguem essa sinergia entre o
apelo popular e a aceitação dos cinéfilos. Selton Mello acaba de engrossar essa
lista com seu segundo longa como diretor, o felliniano O Palhaço, o melhor
filme nacional de 2011 e uma das grandes produções do ano, independentemente de
nacionalidade.
Grandes histórias não precisam ser épicas. Às vezes os
dilemas mais mundanos, os conflitos mais comuns, os personagens mais
corriqueiros são capazes de provocar no público as interfaces cerebrais e
emocionais dignas de uma epopéia grega. E O Palhaço, com seu enredo à princípio
simplório sobre o palhaço tristonho (o próprio Selton Mello) que busca
reencontrar a própria identidade, ao mesmo tempo em que presta contas com sua relação de zelo e dependência com o miserável circo que um dia herdará de seu pai,
também comediante de picadeiro (Paulo José), possui uma força emocional
descomunal.
Grandes roteiros não são meramente escritos, mas
lapidados como uma escultura de Rodin por seus autores. No caso de O Palhaço, o cuidado é tanto que um
mero objeto de cena (um ventilador, que em um primeiro momento aparece apenas como um
elemento cênico descartável, mas se revela a chave principal por trás da
história central) serve de modelo para a construção do próprio texto, que é assumidamente
circular, com personagens e situações que aparecem no começo para retornarem
modificados ao final da obra. As diversas participações especiais (Jackson Antunes, Moacyr
Franco, Tonico Pereira, Danton Mello, Ferrugem, Jorge Loredo), que aos mais
desatentos vão parecer meros esquetes em meio à trama, um Zorra Total disfuncional, funcionam na realidade
como as pás desse ventilador em forma de roteiro, todas elas (todas mesmo)
servindo como propulsores e gatilhos para a jornada do adorável e complexo personagem principal.
Grandes diretores de fotografia têm a inteligência de
nunca desviar o foco da trama a ser contada apenas para embelezar as imagens
captadas por suas câmeras. E O Palhaço tem uma das fotografias mais espertas do ano,
ao enquadrar por diversas vezes os personagens num tablado imaginário,
perfilados como o público diante de um palco que, olhem só, é justamente
ocupado pela platéia do cinema. Esse jogo de espelhos entre o que ocorre no
picadeiro e fora dele é um dos grandes achados do filme, uma referência
explícita ao que o americano Wes Anderson (de Os Excêntricos Tennenbaums até O Fantástico Sr. Raposo) vem
fazendo com êxito exemplar já há alguns anos.
Grandes atores conseguem quebrar a quarta parede que
divide o que ocorre dentro da tela e fora dela apenas com o olhar. Com
pouquíssimas falas, Paulo José, com seu palhaço Puro Sangue, consegue
transmitir uma infinidade de sentimentos apenas com seus olhos às vezes
reluzentes, às vezes opacos.
Grandes filmes conseguem grudar na mente e resistir ao
teste do tempo. O Palhaço estreou timidamente e foi, devido ao
boca a boca entusiasmado do público, ganhando mais e mais espaço no circuito,
até ultrapassar a marca de 1 milhão de espectadores. E as imagens e sensações
que provoca, como a demolidora revelação contida justamente no último enquadramento da
última cena do filme, não saem da retina facilmente.
Grandes obras às vezes vêm travestidas de pequenos
filmes. Assim como grandes espetáculos podem estar escondidos até nos menores e
mais paupérrimos circos do interior do Brasil.
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