
(texto originalmente produzido para a Revista Rua Grande, mas posteriormente pilhado, revirado e desmentido pelo próprio Autor)
Dá gosto quando um diretor com a carreira consolidada, desses cujo nome aparece no cartaz dos filmes lado a lado com os atores principais, se permite brincar com gêneros cinematográficos estranhos ao seu currículo, geralmente produções mais leves e populares. O resultado dessas “férias” dos maestros do cinema volta e meia gera obras deliciosas, como o Drácula do Coppola, o Prenda-Me Se For Capaz do Spielberg, o Todos Dizem Eu Te Amo do Woody Allen e por aí segue. Claro que há também casos em que o cineasta, ao se ver habitando um território que não é o seu de origem, entra pelo cano. Olha aí o De Palma e o seu Fogueira das Vaidades que não me deixa mentir.
Os mais evidentes desvios que Martin Scorsese já tomou em sua trajetória foram dois trabalhos que caíram nas graças do público: um em 1991, com a refilmagem de Cabo do Medo, suspense a princípio padrão que acabou se tornando, por ironia, um dos maiores sucessos de bilheteria de sua carreira, muito pela ferocidade empregada por Martin na condução da história; outro recentemente, em 2006, com o remake de Os Infiltrados, empreitada que lhe valeu o primeiro Oscar de Diretor de sua carreira e corrigiu uma velha injustiça da Academia com o autor de obras-primas como Touro Indomável, Táxi Driver e Os Bons Companheiros.
Com Ilha do Medo (Shutter Island, EUA, 2010), Scorsese retoma pela quarta vez a parceria com Leonardo DiCaprio, depois de Gangues de Nova York, O Aviador e Os Infiltrados. Desta vez, o baixinho aventura-se pelo gênero do terror psicológico, o que só havia experimentado (bem de leve) em Vivendo No Limite, de 1999, aquele filme em que o Nicolas Cage é um paramédico (é, eu sei...).
E o cineasta não desaponta de novo. O filme, uma adaptação de um romance de Dennis Lehane (mesmo autor de Sobre Meninos E Lobos e Medo da Verdade, dois filmaços), é uma homenagem a diretores e obras clássicas do terror e do suspense. Para os cinéfilos, é um banquete de referências, que vão de Os Sapatinhos Vermelhos a Psicose, passando por Um Corpo Que Cai e todos os filmes B de detetive da década de 50 que se pode imaginar.
A trama gira em torno da investigação empreendida pelo policial Teddy Daniels (um surpreendente DiCaprio, cada vez mais distante do galã que ocupava pôsteres adolescentes pós-Titanic) ao desaparecimento de uma paciente de um presídio psiquiátrico localizado na ilha Shutter. À medida que o sumiço parece mais longe de ser solucionado, as motivações pessoais do protagonista vêm à tona, desencadeando uma intrincada cadeia de acontecimentos que pode pôr a sua própria vida em risco. Convém não revelar mais nem uma vírgula além desta sinopse oficial do filme, sob pena de sabotar as reviravoltas presentes no roteiro, artifício que muito provavelmente está garantindo o seu retorno comercial, já que o desenrolar da história pode parecer lento demais para uma platéia acostumada a bater palmas para videoclipes de 2 horas, como Transformers 2 e G.I. Joe.
E olha que o roteiro (muito bem amarrado, por sinal) é daqueles que deixa muita gente coçando a cabeça na saída do cinema.
O bom é que, se ao mesmo tempo Scorcese oferece ao público um legítimo filme de gênero, com sustos, tensão e até alguma ação, o baixinho não abre mão de entregar um produto totalmente autoral, seja pelas intervenções sonoras dramáticas e precisas, seja pela construção de um clima claustrofóbico e opressivo, ou pelos enquadramentos de câmera superlativos e inusitados, que só evidenciam o seu pleno domínio do ofício cinematográfico. Aliás, a cena de abertura, com o navio lentamente revelando-se através da névoa, é o contraponto ideal à luminosidade dos instantes finais, quando as peças já estão devidamente encaixadas. São momentos pequenos assim que revelam a habilidade do manipulador de fantoches por trás da cortina.
Se, entre cada obra-prima que Martin Scorcese dirigir, ele se permitisse descansar com filmes “menores” tão eficientes como Ilha do Medo, a qualidade média dos lançamentos do cinema seria bem maior.
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